Cris M. Zanferrari
“Um homem é o que são as suas cartas”, diz a epígrafe de Alceu Amoroso Lima no prefácio do livro “Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas, 1924-1944”.
“Um homem é o que são as suas cartas.” Dito assim pode parecer exagero ou reducionismo. Mas basta que se leia a correspondência trocada entre Câmara Cascudo e Mário de Andrade ao longo de vinte__ sim, 20!!_anos para que se conheçam os homens por trás dos escritores. Sim, porque está tudo lá: como viviam, o que pensavam, as dúvidas sobre o processo de criação, as dificuldades financeiras, os problemas familiares, as alegrias e as “tristuras” (para usar o linguajar de Mário) da vida de cada um e o alicerce sobre o qual construíram a longeva amizade: a mútua admiração e o autêntico amor e interesse pelas brasilidades.
É curioso notar que esse diálogo epistolar teve início antes mesmo de os escritores se conhecerem pessoalmente, o que só aconteceu durante uma inesquecível viagem de Mário ao Nordeste, passando por Natal, onde finalmente se encontrou com “Cascudinho”. A partir daí, a correspondência entre os amigos ganhou ainda mais fôlego e chegou ao compadrio com o convite de Câmara Cascudo para que Mário apadrinhasse o pequeno Fernando Luís.
Do somatório dessas cartas, fica um fidedigno retrato da própria história do Brasil, da sociedade e da política, da vida literária no país e das venturas e desventuras de quem tem por missão maior deixar o legado de seus escritos. Mas de tudo, o que mais fica é a ideia de que a amizade é um grande farol a iluminar o escuro dos dias, como se lê em carta do autor de Macunaíma: “[…] me é doce ver como os passos da vida vão se fechando em torno de nós, a amizade vai se cerrando, os laços se amarrando e a gente pode nessas redes firmes sossegar um bocado do que vai lá fora.”
É quase certo que quem tem apreço pela leitura de cartas de consagrados escritores busca encontrar, para além do cotidiano narrado, um certo lirismo, algum material de linguajar literário, um certo respingo poético. Nesse sentido, Luís e Mário nos entregam algumas pérolas, em especial na forma de comunicar seu recíproco afeto: “ roubo tempo de mim pra dar pra nós dois”(Mário); “aceite os bons dias” (Luís); “Eu tomo o que é meu em V. uma parte grande espírito e de pensamento. […]Pertenço aos de casa. Primeiros no coração e últimos na mesa.”(Luís); “não vale a pena a gente ficar triste das invenções da saudade, quando já este mundo só por si nos dá tantos milhões de tristuras”(Mário); “abençoá-lo [ao afilhado], isso é de todos os dias, sentimento que está naquela permanência ardente com que a gente ama todos os dias, todas as horas, mãe, mulher, filho, amigo, mesmo sem dar atenção.” (Mário)
Há, entretanto, algumas passagens enfadonhas nas quais_ por mais que nos esforcemos_ sentimo-nos desalojados do lugar da conversação, o que é totalmente compreensível se considerarmos que estamos a “bisbilhotar” um diálogo alheio ocorrido em contexto a nós extemporâneo. Esse mesmo estranhamento se dá algumas vezes em relação ao vocabulário, mas, neste caso, o efeito acaba por ser até mesmo cômico, como quando Cascudo se despede dizendo “Tenha V. três costelas partidas por um acocho, sequaz” ou quando se dirige a Mário tratando-o por “bestão querido”.
As quase 400 páginas de “Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas” trazem, ainda, as fotos que acompanharam algumas das missivas e uma série de anexos com artigos dos escritores. Trata-se de um material que tanto pode servir ao leitor ávido por conhecer a subjetividade de cada autor quanto ao leitor interessado em pesquisar aspectos históricos da cultura brasileira. A um e outro, resta aconselhar: leiam, pesquisem, mas façam-no com curiosidade. Com a “curiosidade simples e humilde de só mesmo saber mas muito amar.”
Dando uma espiadinha por aqui e adorando tudo! 😚
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Obaa!! Feliz de saber, Lari!! Volte sempre, querida! 🥰😘
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Olá Cris
Parabéns pelo texto. Fiquei com vontade de ler essas cartas. Adoro cartas. Li as da Clarice para suas irmãs. Li as de Graciliano Ramos e as de D. Leopoldina. Mas sempre fico com a sensação de estar bisbilhotando. Sei não, talvez se estivessem vivos elas não seriam publicadas.
Um abraço
Angela
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Obrigada pela leitura, Angela!
Adoro ler cartas, e também li as de Clarice para as irmãs e as correspondências trocadas entre a autora e Fernando Sabino. O gênero epistolar é cativante, não é mesmo? E confesso que dentre minhas preferidas estão as cartas de Caio Fernando Abreu!
Bjo, querida!
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