Cris M. Zanferrari

O que define uma necessidade?

Não, não é preciso ir ao dicionário. Tampouco ao Google. Basta olhar um pouquinho para dentro de si. Olhar-se ao espelho também pode ajudar (ou desesperar!). Em todo o caso, a necessidade é sempre algo que nos falta. Algo a nos completar, nos preencher, nos saciar. E não, não estou a falar das necessidades básicas, que essas todos bem as conhecem. Falo de necessidades mais sutis. Pequenos fragmentos quase imperceptíveis que, ao comporem o quadro de nossa realidade, tendem a ser minimizados pelo pragmatismo das “reais” necessidades. Fragmentos de devaneio, sonho e sensibilidade. Fragmentos de música e de arte. De poesia.

A poesia é necessária porque nos falta. Falta em nós o que sobra aos poetas. Falta em nós não o sentimento, mas uma forma de expressá-lo. Falta em nós não o sonho, mas uma linguagem para transpô-lo. Falta em nós não o mistério, mas o saber dizê-lo. Falta em nós não a explicação, mas o entendimento. E porque nos falta _ ah, tantas vezes nos falta_ a humildade de nos reconhecermos humanos, é que a poesia é tão necessária.

Disso sabia o mestre da crônica, Rubem Braga. Tão bem o sabia que criou, na extinta revista Manchete, a seção “A poesia é necessária.” Lá, publicava poemas os mais variados. Apresentava poetas novos, relembrava poetas esquecidos, revisitava poetas consagrados. Até o dia em que a nova direção da revista decidiu que a poesia não era mais necessária. O velho Braga acatou a decisão: “Não discuto com a direção. A prova de que a poesia não é necessária é que a revista continua crescendo, vende como pão quente, está cheia de anúncios e rendendo bela erva.”

Não fui leitora da Manchete, mas sou leitora de Rubem Braga. E se poesia não vende como pão quente é apenas porque ainda não se aperceberam de sua falta. Não se deram conta de que os melhores sonhos nem sempre se encontram às padarias, e que a doçura da vida não se prende só ao paladar.

Sim, Rubem, a poesia continua necessária. Prova disso é este livro que aí está, lançado em 2015, entre notícias de mares de lama: em Brasília, em Mariana. Entre o terror em Paris e a carnificina de nosso trânsito. Entre tantas faltas, aqui dentro ou lá fora, está aí este livro a comprovar que a todo instante, no mundo inteiro, “a poesia é necessária”.

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CARTA DO LÍBANO
Afonso Felix de Sousa

Sabias que entre os árabes
se a mulher engravida
aos pais todos auguram
um varão e não filha?

Que se nasce menina,
o pai já tem por praxe
do que cobra a parteira
não dar mais que a metade?

Pois nasceste menina
contra o augúrio de todos,
e por isso à parteira
eu pagaria em dobro

Fonte: BRAGA, Rubem. Organização André Seffrin. 1.ed. São Paulo: Global, 2015.

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

5 comentários sobre “Necessidade

  1. Que texto lindo! Dizem que só a poesia fala a verdade. E segundo Leminski poeta não é só quem escreve poesia mas também quem ama e curti poesia. Estamos nessa Cris.

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  2. Muito necessária Cris, pra tudo o que é leve, suave como o vento, ou até os dramas da vida, encontrarem um canal de expressão com o outro, um encontro, uma reflexão, um sentimento. Beijos e boa semana querida!!

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