Cris M. Zanferrari

Diz Ortega Y Gasset, num de seus ensaios, que necessita de toda sua herança familiar para não se sentir triste. O filósofo nascido espanhol está a se referir a um lado seu que “ofega na zona crepuscular” de sua alma: o lado germânico. Sua cósmica aspiração: “pôr paz entre meus homens interiores”.

Releio o parágrafo e divago sobre o determinismo de sermos quem somos. Melhor dizendo: penso em como levamos dentro e fora essa bagagem cultural de nossos ancestrais. Se descendesse de italianos, por exemplo, é muito provável que eu falasse alto e gesticulasse bastante. Talvez gostasse de andar descalça se tivesse algum parentesco australiano. Ou, quem sabe, a tarefa de vestir com elegância fosse uma quase naturalidade, tivesse tido alguma bisavó de origem francesa. Mas não: meu legado é levar tudo muito a sério, é uma carência de senso de humor, é esse discipulado do perfeccionismo no mais reles dos afazeres. Ao contrário do filósofo, minhas mulheres interiores têm igual ascendência: carrego sobrenome alemão de pai e mãe, minha teimosia, portanto, vem de além-mar.

Dar-se conta de que a gente traz incrustado no DNA esse traço étnico de personalidade é um passo fundamental na jornada diária de autoconhecimento. Quem desconhece suas origens perde uma parte de si. Perde de se compreender melhor, de se aceitar como é. Saber de nossos antepassados os hábitos, costumes, gostos e manias, vivenciar os aspectos culturais de nossa miscigenação, é um pouco como voltar para casa, à nossa casa interior.

Eu vivo pra dentro. Por isso, nos primeiros dias, nem dei pela quarentena. Ficar em casa é da minha natureza. Não precisar ir às compras, abolir a vida social, escapar do trânsito, desmarcar compromissos, desligar da tomada, desacelerar. Não fosse pelo terror lá fora, seria uma verdadeira trégua do mundo. Mas há o medo, e o silêncio que hoje impera pelas ruas do bairro é sombrio. Há inquietação, incerteza e angústia no ar. E é nessa horas, passados já vários dias em isolamento, que recorro às minhas origens. Teimo em por e retirar a mesa (só pela alegria dos recomeços), teimo em manter limpa a pia, arrumar a cama, obedecer à rotina das horas, não descuidar das flores no jarro, não desarrumar os pensamentos de paz e serenidade. Manter a ordem da casa ajuda a manter a clareza da mente. São gestos herdados das avós e bisavós que, em seu sangue germânico, trouxeram junto com a resiliência esse amor pelos caprichos do lar.

Ouço dizer que a Alemanha está se saindo bem no combate ao vírus, em parte pelo distanciamento social, rigorosamente obedecido. Em segredo (com isso quero dizer: por dentro), me orgulho dessa segunda nacionalidade em minhas veias, e fantasio que o êxito no enfrentamento à doença tenha algo a ver com esse esmero dos alemães em fazer do lar um lugar de onde não se deseja sair. Sim, alemães são sisudos e pouco afáveis, mas abrigam um coração bom, materializado, inclusive, nas inúmeras feiras públicas onde o apresentam como souvenir em madeira, metal ou cerâmica. Deve vir daí essa minha mania de ter corações espalhados pela casa, um ornamento tão simples e delicado, a lembrar que a vida é pulsação.

De tudo isso, chego à conclusão de que nossa herança familiar determina, em diferentes graus, nosso modo de ver o mundo. E se for assim, talvez você também encontre, revendo algum álbum de família, explicação para o seu jeito de lidar com a quarentena. Nesse caso, terá encontrado um bem ainda mais precioso e permanente: uma parte de si que explica todo o resto.

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

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