Cris M. Zanferrari

Estamos, desde ontem, na capital da Suécia, com tempo o suficiente para algumas das visitas de praxe nessa cidade-arquipélago, incluindo um passeio de barco.
Hoje, saímos a caminhar em direção a Gamla Stan, a cidade velha ou centro histórico, com construções medievais que agora abrigam, em sua maioria, lojinhas, cafés e restaurantes. Partindo do hotel, o percurso até o bairro antigo é tranquilo e sossegado, e as cenas são típicas de uma urbe qualquer: pessoas se deslocando de um lado a outro, trabalhando, se exercitando, negociando, gerindo suas vidas e carreiras enquanto nós, em família, turistamos. “Quando caminho pelas ruas duma grande cidade todo o meu desejo é deixar-me levar, sem plano nem bússola, como que erguido na crista da onda humana que coleia nas calçadas.” Ser turista é um pouco isso mesmo, meu querido Verissimo: deixar-se levar, sem nunca ter um compromisso urgente nos aguardando. Mas deixar-se levar é um luxo que só nos cabe quando o cotidiano pelo qual perambulamos não é o nosso.
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Um dos inúmeros becos em Gamla Stan

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No alto do edifício, ao final dessa quadra no centro comercial de Estocolmo, tremula uma bandeira. Não sei se ali é uma moradia, um restaurante, uma instituição ou o quê. Sei apenas que aqui, na chamada capital da Escandinávia, temos essa bandeira e eu a mesma nacionalidade: somos brasileiras. Eu, a passeio. A bandeira, bem, não sei o que faz uma bandeira do Brasil hasteada no topo de um edifício no centro da capital da Suécia além de evocar nessa turista aqui embaixo um sentimento piegas de amor à pátria. Mas a verdade é que, nesse momento, à vista desse símbolo pátrio no meio de uma rua em Estocolmo, me sinto um pouco menos estrangeira.
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Ambiente dentro de uma loja de departamentos

Não sei dizer o porquê, mas Estocolmo me parece a mais escandinava das cidades escandinavas que conheço. Suspeito que tenha algo a ver com esse design tão limpo, tão simples, tão difundido pelo mundo globalizado e que aqui se faz notar por tudo quanto é lado. Do mobiliário e decoração ao vestuário, tudo é de uma simplicidade poética. Tudo parece pensado para ter uma função prática e usual, tudo concebido dentro de uma estética visual com pouca informação, o que é um doce descanso para os olhos. Há pouco uso da cor, estampas são uma exceção, e o uso de fibras naturais e muita madeira são a exata medida do conforto e aconchego nesse país onde as temperaturas invernais são sempre negativas. Observo todas essas coisas e sinto, durante o passeio, o peso da contradição humana. Vivo num país tropical e colorido, por que então me sinto atraída por essa quase ausência de cor e por esse vento gelado que sopra em pleno verão aqui na Suécia?
Precisamente porque vivo num país tropical e colorido é que desejo o seu oposto. Um país tropical e colorido é o que haveria de desejar se eu vivesse aqui. Sempre alguma coisa nos falta, nos faz ressentidos, nos faz nostálgicos. E também disso somos contraditoriamente feitos.
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No interior do Museu Vasa

Estamos do lado de fora do Museu Vasa, o mais visitado dos museus nórdicos. Faz sol, e ninguém quer ficar à sombra. Nem mesmo essa mulher alta e magra, que agora vem se achegando de minha filha mais velha para conversar. À distância em que estou, e por causa do vento, ouço-lhes apenas uns fragmentos de diálogo, mas presumo um ar preocupado e levemente agitado no rosto dessa falante senhora. Venho saber depois: ela aguardava saírem do museu a filha e o namorado, a quem [a mãe] acabara de conhecer. Contava ela__ numa ânsia por desabafar__sobre a má impressão que o eleito da jovem lhe causara. Recém chegada de um intercâmbio na Alemanha, a menina trouxera para casa, em total intimidade, um desconhecido rapaz alemão, deixando a pobre mãe atordoada. Causou-me uma certa comoção que a angústia da mulher fosse tal que a tivesse levado a confessar-se com uma estranha à porta do museu. Quanta turbulência há de ter sacudido o edifício interno dessa pessoa para fazê-la falar, em língua estrangeira, sobre algo tão pessoal e íntimo? Afinal, fora ela mesma que o dissera: necessitava urgentemente desafogar-se através das palavras, dirigi-las a quem quer que fosse, libertá-las da prisão de seu peito. Quanto à minha filha, soube ser ouvinte e aconselhar de uma forma que eu mesma não teria sido capaz de fazer, porque os dramas maternais, incluindo os alheios, embaçam-me a visão e embargam-me a voz. Olho em redor à procura de ver outra vez essa mãe e seu desatino, de verificar se está menos desamparada após o desabafo, mas só o que vejo é uma multidão em busca de sol e luz. Ninguém quer ficar à sombra.
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Helsinque

O último dia em Helsinque, na Finlândia, é também o último dia desse belíssimo passeio pelos países escandinavos. É um dia cinzento, chuvoso, melancólico como as despedidas. E estamos, sim, a nos despedir. Não apenas da cidade__ que é bela, pacífica e urbanamente civilizada__, mas também de tudo o que representaram esses dias de lazer, cultura e conhecimento, boa gastronomia, e, sobretudo, de uma intensa e amorosa convivência familiar. Estamos a nos despedir desses dias de sonho e festa a que comumente chamamos férias.
Mas a bem da verdade, o último dia só não acaba se tornando ainda mais lamurioso porque, marinheiros de outras viagens, descobrimos o antídoto infalível contra a melancolia das despedidas: consiste, pois, em mal tendo acabado o passeio estarmos já a planejar o próximo. Não sei dizer se isso é bom ou se é mau, se é precipitado ou se nos impede de vivenciar de forma plena o sentimento natural que é essa tristeza de partir. Sei apenas que funciona, porque a névoa de nostalgia que ameaça se instalar, em verdade se dissipa tão logo se comece a cogitar o novo destino. E, afinal, talvez seja da natureza humana o desejo de sempre nos pormos em movimento. Ou culpa de alguma gravura que se viu na infância, como Erico bem assinalou:
“Creio que a gente viaja muitas vezes por culpa duma gravura que viu na infância, num velho livro. A ilha de Bali… Cena de rua em Hanói… Cerejeiras floridas em Washington… Voltamos a página, devaneamos um pouco, depois aparentemente esquecemos a figura. Mas acontece que a lembrança do clichê se transforma num desejo, e esse desejo fica como que adormecido durante anos e um dia, em a sorte ajudando, ele nos leva a viajar. Vamos ver a ilha mágica, as cerejeiras à beira do Potomac, a capital da Indochina __ para chegar à conclusão de que todos esses lugares e coisas não possuem na realidade metade da graça e da sugestiva poesia, já não digo das velhas gravuras, mas do mundo que elas criaram em nosso espírito. Verificamos também, quando em viagem pelo estrangeiro, que nossa casa, nossa querência __ que nos pareciam antes foscos, prosaicos e repetitivos __ ganham com a distância um lustro, um encanto tão grande como o da gravura da infância. Voltamos liricamente para a casa, julgando saciada nossa fome de horizontes. Mas um dia o velho livro nos cai de novo sob os olhos. Lá está a rua de Hanói, a ilha verde e as cerejeiras em flor. Ficamos outra vez a devanear, nostálgicos, e nosso desejo de viajar é tão grande que acaba nos jogando dentro dum trem ou dum avião, nem que seja para uma viagem intermunicipal.”

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

4 comentários sobre “A Suécia dos meus olhos (fragmentos de um quase diário)

  1. Olá Cris,
    Nos conhecemos no instagram e foi através dele que descobri esse blog lindo! E olha a minha surpresa, encontrar aqui seus devaneios escandinavos, que em partes, brevemente, serão também os meus.
    Te conheço pelas fotos e citações, quão grande é minha surpresa em te descobrir escritora.
    Várias partes do seu texto são tão belas que merecem ser citadas. Eu ousaria dizer inclusive que você, pela destreza da escrita, pode se dar ao luxo de parar de citar porque sua escrita basta e sobra.
    Tem um canto de Gamla Stam que eu quero muito fotografar, e a legenda para a foto eu já escolhi. É uma citação que você postou no IG há um tempo, mas me tocou muito, e está presente nesta postagem também:
    “Creio que a gente viaja muitas vezes por culpa duma gravura que viu na infância, num velho livro”
    Meu blog é anônimo, mas acredito que pelas flores, você me reconhecerá. E acabará sabendo que por trás das flores existe uma jornada com dolorosos espinhos.
    Mas quem não os tem?
    Um abraço
    Dona

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    1. Querida Dona!!
      Você não pode imaginar o meu contentamento com o seu comentário!! Quanto incentivo me veio através das suas palavras!! Fico profunda e emotivamente agradecida, minha querida!
      Visitei seu blog e penso ter reconhecido a Dona por trás de toda aquela delicadeza que lá encontrei. Voltarei lá para acompanhar a sua história e ficarei, desde já, na torcida pela realização do seu sonho de maternidade!!
      Um abraço bem apertado e repleto de carinho pra você!
      P.S.: Adorei saber que você já tem a legenda para a foto que ainda irá fotografar; o cenário perfeito irá ao seu encontro, tenho certeza! 😍😘😘

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      1. Obrigada pela sua torcida, Cris. Significa muito, muito mesmo, para mim!
        E quanto ao cenário perfeito, tenho certeza de que ele vai se revelar! Você saberá 😉
        Bjo e ótima sexta, ótimo fim de semana!
        Dona

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