Cris M. Zanferrari
Nunca estive na Rússia, mas a visão à distância da Catedral Alexander Nevski, em Tallinn, Estônia, faz lembrar as cúpulas da Catedral de São Basílio em Moscou, que aprendi a reconhecer através dos livros de história. De perto, sua arquitetura em estilo russo se impõe de forma ainda mais majestosa. É impossível olhar para o alto de suas torres sem sentir uma pequena vertigem. Não faço questão de adentrar esse templo ortodoxo por uma razão muito simples: é agradável olhar para o edifício daqui onde estou. Vejo-o de frente, a uma quantidade de passos suficiente para vê-lo por completo, inteiriço, e fico maravilhada diante dessa imensa construção que mãos humanas foram capazes de erguer. Mas o interior da catedral me chama, ou antes, chamam-me os que entram, chama-me o imponderável que diz: “eis que tu estás aqui e agora. Toma o momento por único, porque assim o é.” Entro, afinal. Saio dois minutos depois. O cheiro forte das centenas de velas queimando me nauseia, cheira a velório de avô numa casa de interior. O imponderável é também a infância adormecida em nós.
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Caminhar por Tallinn__ passando pelos portões que conduzem à parte antiga e lentamente ir subindo ao centro histórico__ é render-se ao turismo contemplativo, que se congraça com os artistas de rua pintando telas, tocando um instrumento musical (há muitos violinistas pelos becos e ruelas), cantando, com os pequenos e charmosos restaurantes, com simpáticas cafeterias, com lojinhas de artesanato local, com gente de boa e de bem, com tudo, enfim, que faz bem aos olhos e à alma.
Sim, Tallinn é uma cidade turística, mas de um turismo feito sem pressa, andarilho, sossegado.
Sei que daqui a alguns dias ou meses, já de volta à minha terra, num dia qualquer da semana __ algo que, neste momento ainda desconheço, irá desencadear essa memória __ lembrarei dessa praça, do jovem violinista ao cordão da calçada, das pinturas expostas nos muros da fortaleza de pedra, do tranquilo vaivém de toda a gente, e sei que, ao lembrar, hei de sentir uma doce e terna saudade. E há também de me condoer __ ou talvez, consolar__ saber que lá, nessa mesma Tallinn que meus olhos registraram encantadora e medieval, a vida segue com outras gentes a passar pelo mesmo violinista, pelas mesmas pinturas, pelas mesmas praças. A vida segue em Tallinn como em qualquer outro lugar do mundo: irrefreável.


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De regresso ao hotel, há que passar pelo grande portão da antiga fortaleza e pelo curioso mercado das flores, aberto 24 horas por dia, 365 dias ao ano. Pode parecer um exagero que essas bancas floridas estejam à disposição do consumidor o tempo todo, ainda mais quando se trata de um artigo que está longe de ser considerado item de primeira necessidade e que mesmo flor comestível ainda é coisa para poucos paladares. Mas é que em Tallinn é costume quando as pessoas se visitam (e devem se visitar muito) levar flores aos donos da casa. Gentilezas que, se não justificam o incessante comércio, certamente enfeitam com cor e perfume o cotidiano.
Mas é precisamente perto desse mercado que agora se acumula uma multidão. Formam um grande cordão humano a bloquear a rua que dá acesso ao antigo portão pelo qual desejamos passar. Não há tumulto, nem agitação, há apenas esse grande grupo de pessoas que, celulares à mão, fotografam ainda não sei bem o quê. Aproximo-me e vejo que a área toda está isolada e que há duas viaturas policiais e um caminhão de bombeiros. Estranhamente, não vejo sinais de acidente ou atropelamento, tampouco de fogo. Resolvo perguntar a uma jovem que ali está o que se passa. Ela me diz que não faz ideia do que está acontecendo, mas não me parece assustada ou preocupada. É quando percebo que há um grupo de adolescentes uniformizados, atendentes de um McDonald’s, do lado de fora do estabelecimento. Deixo-me levar pela curiosidade e, vencendo qualquer espécie de timidez, abordo uma das funcionárias para saber o que há. “A polícia está procurando por uma bomba ali dentro”, ela me diz com a simplicidade de quem anota um pedido. Tento disfarçar o pavor que sua frase me provoca e procuro, sobretudo, não bater em retirada imediatamente. Prolongo a breve conversação desejando-lhe que tudo não passe de uma brincadeira de mau gosto, mas tão logo lhe dou as costas, apresso o passo em direção aos meus e toco-lhes o terror. Saímos dali à procura de um outro caminho para o hotel, a considerar que, perto do mercado das flores, nem tudo são flores!
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Já agora é noite nesse país báltico onde estou à janela do quarto. O que vejo à luz crepuscular, às vinte e duas horas dessa noite de verão, é nada menos do que um espetáculo epifânico. Sim, é uma verdadeira epifania a visão desses três templos iluminados por um céu tingido de ouro, paz e silêncio. Não sei descrever o que sinto, mas é bom, é manso, é sereno. Só sei olhar e sentir. Seja essa a minha prece.
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