Cris M. Zanferrari

Cada vez mais me convenço: palavras são entes vivos. Vivem entre nós como se fossem gente, e tanto é verdade que a algumas nos afeiçoamos ternamente, por outras caímos de amores, algumas nos dão medo, outras causam repulsa, e umas tantas há que nos despertam raiva, rancor e até mesmo ódio. Assim como todas as gentes, há palavras para todos os gostos: bonitas, feias, gordas (são encorpadas de sentido), magras (são insuficientes para expressar), gostosas, asquerosas, grandiloquentes, reservadas, e por aí vai. A população das palavras é tão diversa quanto à das gentes e, por isso, jamais chegaremos a conhecê-las todas, o que sequer seria desejável.

Pois bem. Nesse universo que é a linguagem e todas as suas possibilidades, sempre achei que há uma palavra por demais injustiçada. É uma palavra que para a maioria das pessoas se traduz em monotonia, chatice, enfado, mesmice, tédio, e sabe-se lá mais o quê. A maioria das pessoas foge ou quer fugir dela por puro receio de se sentir aprisionado, de sentir como se a vida, feliz e proveitosa, só pudesse acontecer bem longe dela. Sempre mal vista, insultada e caçoada, a pobrezinha da palavra não tem culpa alguma além de expressar o que é mais inerente ao ser humano: o desejo de repetição. Sim, estou falando da rotina.

A rotina é a realização mais cotidiana, mais comezinha, de nosso humano desejo de (nos) repetir. Ela nos dá uma certa segurança e uma relativa tranquilidade, o que não é pouco para os dias de hoje. Saber o que se vai fazer, como se vai fazer, com quem se vai estar, onde se vai terminar o dia, ou seja, saber que “todo dia vai ser tudo igual” pode ser, ao contrário do que se supõe, libertador. É uma imensa liberdade não precisar decidir todo dia de novo as mínimas coisas, os ínfimos afazeres. Conhecer a cartilha do ABC diário é não ter que precisar todo novo dia reaprender a ler. É ou não é uma bênção?

Aliás, a gente só percebe a rotina como algo sagrado quando ela nos falta. Quem, enfermo num leito de hospital, não preferiu trocar a doença pelo mais chato dia de trabalho? Quem, diante de uma tragédia pessoal, não desejou regressar ao mais “comum e normal” de seus dias? Quem, em circunstâncias as mais adversas, não ansiou pela paz e pelo sossego dos dias (quase) todos iguais? E não é preciso pensar só nas mazelas para sentir falta da famigerada rotina. Viaje pra ver. De preferência, para o exterior. E por mais de quinze dias. Passadas a empolgação com as novas paisagens e a avidez por provar os pratos típicos, você já estará se chateando por dormir numa cama que não é a sua, por ter de entender e fazer-se entender numa língua que também não é a sua, por sentir falta do tempero da sua comidinha básica. Num mundo cada vez mais “personal”, já parou pra pensar que a rotina é a coisa mais pessoal que a gente pode ter? Todo mundo tem, ou deveria ter, uma rotina pra chamar de sua. Porque tudo nela, na verdade, é seu: seus hábitos, seus costumes, suas manias, seu jeito de ser e de fazer as coisas todas.

Pensando bem, talvez seja por causa desse sentimento de pertencimento (minha rotina me pertence), quase maternal, que rotina sempre me pareceu uma palavra tão feminina. Inspira cuidados e até _ por que não?_ uma certa devoção. A verdade é que nem sempre lhe dão o devido valor. Fosse eu publicitária, lançaria uma campanha para promover a saúde e o bem-estar através da valorização da rotina. Seria clara e objetiva, como todo imperativo na vida: “Rotina: conquiste a sua!”, “Rotina: ame a sua!”

E por falar em amor, creio que não pode haver indicador mais legítimo de uma vida bem aproveitada do que amar a própria rotina. É claro que as exceções são sempre bem-vindas, porque pelo bem ou pelo mal nos ajudam a recompor a forma como vemos o mundo. Mas a vida acontece mesmo é no dia a dia, na constância de tudo que segue seu próprio ritmo, nesse equilíbrio estável que é poder (se) repetir. Por isso, gosto quando meu dia termina com a mesma constatação do personagem de Benedetti ao fazer um balanço das suas vinte e quatro horas: “Hoje foi um dia feliz; só rotina.”

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. É também especialista em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária, titulação obtida em 2022, pela Unochapecó. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

2 comentários sobre “Dia Feliz

  1. Cris, compartilho do seu sentimento de injustiça pela tal palavrinha e ouso dizer que também pelo seu amor a ela! Seu texto lhe denuncia!
    Li-o na segunda-feira ainda bem cedo quando me chegou o aviso sonoro pelo celular. A luz fina do sol matinal atravessava o tecido da cortina e foi especial. Especial porque eu gosto e abraço as segundas-feiras, o retorno à rotina. Como gosto dela. E ela mesma que me faz desfrutar o diferente, mas também me faz sentir tão bem em suas coisa comezinhas.
    Queria espalhar e preencher os corações que conheço que a blasfemam, que a traduzem como sinômino de infelicidade, inimiga de casamentos…
    Espetacular seu texto! Beijo.

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