Cris M. Zanferrari

É fato que quase ninguém lê, ou costuma ler, a dita “orelha” de um livro. Trata-se daquela dobra da capa que, em geral, contém as impressões de um outro autor, que não o autor do livro, sobre a obra. Costumam ser elogiosas, obviamente. Mas não só. A tal orelha, muitas vezes, faz ouvir uma voz num tom acima de uma mera nota de apresentação. Faz ouvir um chamamento, um canto de sereia que enfeitiça e conduz para dentro do universo do livro.

Vezes há em que há tanta poesia e delicadeza a adornarem a orelha do livro, que se poderia dizer dela: é um brinco! Vezes há em que as palavras ditas na orelha do livro jogam luzes sobre o corpo do texto e o iluminam, ou funcionam como mapas para que não se percam as direções e os sentidos a que o leitor pode chegar.

Nessas orelhas que falam, tenho encontrado_ e nem tão raras vezes_ verdadeiras pérolas a seduzirem para a leitura da obra que guardam. Tal qual uma concha, suas palavras deixam entrever preciosidades, aguçam paladares, exalam mistérios e profundidades. Preparam os sentidos todos para o banquete literário a ser servido.

Numa dessas vezes, encontrei Carpinejar lapidando palavras para ofertar um tesouro: o livro “1”, de Gonçalo Tavares. Noutra vez, vislumbrei um quase “manoelês” na linguagem de Ana Miranda a falar da poesia de Manoel de Barros. Noutra ainda, Luiz Ruffato pôs-se ao pé do ouvido (ou melhor seria dizer: da orelha) para antecipar pequenos trechos de contos de “Duas Tardes” e prometer ao leitor o que Carrascoza de fato nos entrega ao longo dos textos: verdadeiros momentos de epifania.

Sim, eu sei que boas obras dispensam apresentação. Mas também sei que se um bom livro é uma ceia cuidadosamente preparada para o mais exigente dos leitores, uma boa apresentação é uma entrada, um appetizer preparado com igual requinte e habilidade. E, por sua vez, também pleno de sabor. Capaz de despertar uma fome ainda maior.

————————————————————————–

O texto a seguir, escrito por Luiz Ruffato, reveste as orelhas do livro “Duas Tardes”, de João Anzanello Carrascoza, editado pela Boitempo, em 2002:

“Comecemos eruditos.

Epifania (do grego epipháneia, “aparição”) é um termo da teologia usado para descrever a aparição de Jesus Cristo aos gentios ou, por extensão, uma manifestação divina qualquer.

Menos usualmente, podemos (podemos?) entender esse conceito como aquele instante mágico em que algo nos ilumina, modificando a substância de nossas vidas, mesmo que só venhamos a ter consciência disso muito tarde.

Em “Visitas”, um dos contos desta coletânea, um casal de classe média, bem posto na vida e feliz, recebe outro casal, igualmente bem posto na vida e feliz _ uma filha, cada _ , para um almoço. Acomodados na sala de estar, a história se desenrola em conversas banais, observações banais, diálogos banais. Então, os homens vão à garagem ver o carro novo do anfitrião; as mulheres, ao quintal, conhecer o canteiro de hortelã, erva-cidreira, salsinha e manjericão; as meninas permanecem brincando do lado de fora da casa. Nesse momento, João Anzanello Carrascoza mostra porque é uma das vozes mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ele passa a descrever os vestígios de vida que há ali, bolsas e chaves dos visitantes, os brinquedos da menina espalhados pelos cantos, as migalhas de comida na toalha, o cheiro de cigarro…o silêncio…as sombras…a lembrar que, para além daquela pequena felicidade, há, pairando sobre tudo, o tempo, implacável, nos empurrando para a morte.

Disso é feita a escrita de Carrascoza, de poesia que se quer silêncio, de miudezas que constroem o cotidiano, de melancolia, de lirismo.

Gosto demais da sua sensibilidade aguçada, que nos faz, em “O menino e o pião”, que abre o volume, antecipar, numa frase, toda a tragédia da nossa finitude. O menino roda o pião e “nem nota que o pai para no corredor às escuras e de lá o contempla, girando outro pião dentro dele. O menino não cogita que um dia esse cordel se partirá.” Ou, como em “Preto-e-branco”, que fecha a coletânea, onde constata, após relembrar a alegria dos sábados passados junto ao avô, que agora está morto: “inesperadamente vejo brotar dessas linhas um imenso arco-íris. E ao fim dele sei que está meu avô, com a bengala no braço, fumando seu cachimbo, à minha espera.”

Eis o que o espera, caro leitor: epifanias.”

CARRASCOZA, João Anzanello. Duas Tardes e outros encontros silenciosos. 1.ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. É também especialista em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária, titulação obtida em 2022, pela Unochapecó. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

10 comentários sobre “Orelhas que falam (ou: da apresentação de um livro)

    1. Mariza querida,
      Tenho uma relação visceral com os livros. Assim como você, leio de “cabo a rabo” e não me contento se não puder cheirá-los. Me envergonhava dessa mania (de literalmente enfiar o nariz para dentro das páginas) até assistir a uma entrevista com o adorável Mário Sérgio Cortella e ouvi-lo confessar a mesma coisa…hehehe…
      Obrigada pela presença, amada!!
      Bjo afetuoso

      Curtir

  1. Ah como eu precisava ler esse seu texto!
    Certa vez, li uma orelha que “entregava” mais do que deveria da história e logo em seguida li o desabafo de uma amiga blogueira que foi veemente em abolir as orelhas de suas leituras!
    Acabei por fazer o mesmo durante muito tempo. Seu texto foi uma redenção!
    Beijo!

    Curtir

Deixe um comentário