Cris M. Zanferrari

De todos os textos de Caio, sigo relendo aquele que acabou por intitular (postumamente) um de seus livros: “Pequenas epifanias”. Uma crônica de extrema doçura e sensibilidade. Que faz sentir mais do que pensar. Que faz lembrar que a vida tem instantes mágicos, etéreos, inexplicáveis.

“Pequenas epifanias” é delicado como uma joia. Por isso, há que ler com cuidado, com melindres de um ourives, com paciências de quem incrusta no anel uma pérola. Há que ler como quem descobre um tesouro, uma “pífia revelação”. Aqui está: Palavra de Caio Fernando.

Pequenas Epifanias

Caio Fernando Abreu

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector “Tentação” na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias encravadas no dia a dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Fonte: ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. É também especialista em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária, titulação obtida em 2022, pela Unochapecó. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

2 comentários sobre “Palavra de Caio Fernando Abreu

  1. Que lindo texto!!! Cris, ele é jóia, é pintura abstrata, é esta flor única da foto do post, um esplendor de lilás, branco e verde. A revelação é tão tão única, que não admite interpretação, apenas me permite ler e relê-la, num admiração sem fim. O que seria de nós, sem as pequenas epifanias? Beijos querida

    Curtir

Deixe um comentário