Cris M. Zanferrari

Flannery O’Connor não me chegou, como supostamente deveria, pela mão de um professor ou especialista em Literatura. Chegou-me ao acaso, como chegam algumas notícias ou alegrias insuspeitadas.

Aconteceu assim: entrei numa espécie de paraíso na terra, que pode ser tanto uma livraria quanto uma biblioteca. Calhou de ser uma livraria. Daquelas em que mal se entra e já um solícito atendente nos oferece ajuda ou passa a nos fazer sugestões.

Muito injustamente não lembro o seu nome, mas foi o melhor atendente que já encontrei em uma livraria. Ou melhor, e justiça lhe seja feita, não era um atendente. Era um leitor voraz. E com amor e conhecimento notáveis pelos livros, atendia. Foi por suas mãos que tomei nas minhas um livro de O’Connor pela primeira vez.

De imediato seduziu-me a capa: preta, dura, com arabescos. Os “arabescos” são em verdade, me explicou ele, o desenho das penas de um pavão com a cauda aberta, belamente descrito pela autora no conto “O refugiado de guerra”. E então passou a contar-me a história e, depois desta, a comentar detalhes de um e outro conto mais. De súbito, reparo: não era mais um vendedor  que ali estava, era um leitor apaixonado. Um leitor querendo, sobretudo, compartilhar alegrias de quem leu de fato a obra. De quem a conhece. Um leitor e seu entusiasmo diante da boa literatura. Um leitor a encantar com conversa literária um outro fascinado leitor.

Livrarias deveriam ter mais leitores-atendentes, isto é, leitores que atendem, não apenas atendentes que leem (quando leem).  A leitura sempre precedendo o atendimento, norteando o rumo da conversa, conduzindo a prosa toda. Assim é que deveria ser: livraria, um local onde convivem e congraçam leitores. E onde, de quebra, se vendem livros.

Redundante dizer, mas digo: levei Flannery O’Connor  para casa naquele mesmo dia. Levei-a com o certificado de garantia de uma bela escolha, de uma escolha acertada porque muito bem recomendada. Dentro do livro, uma pequena recordação do leitor que me atendeu: uma sugestão dos melhores contos da obra, a serem lidos na sequência listada. Não lembro de a ter seguido à risca, mas o papel dobrado continua lá, a fazer as vezes de marcador de página e a lembrar que os melhores livros nem sempre nos chegam pelas mãos dos críticos literários ou por vias acadêmicas. Eles também podem nos chegar assim, pelas mãos de apaixonados leitores que, eventualmente, se encontram prestando atendimento em alguma livraria.

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Breves impressões sobre “Contos Completos”

Sempre que penso em reler algum dos contos de O’Connor, imagino logo um cenário digno desse momento literário. Há que ser um lugar calmo, com uma poltrona confortável (o que inclui, invariavelmente, um apoio para os pés), boa luminosidade, absoluto silêncio e um chá para ser degustado de forma lenta. É que as histórias de Flannery se passam num outro tempo, numa época tão distante quanto diversa da nossa, e por isso nos cobram um outro ritmo de leitura.

Há uma cadência precisa e concreta em suas narrativas, e nada escapa à autora na criação de seus personagens, cenários, situações, ou acontecimentos. Aliás, a concretude (e por vezes até brutalidade) das descrições, dos fatos contados, e das próprias personagens, nos faz crer que estamos a conhecer um relato de fatos reais ou potencialmente reais. Quase nos esquecemos de que é literatura. E das melhores.

“Além da expressão neutra, em ponto morto, que assumia quando estava sozinha, Mrs. Freeman tinha outras duas, para a frente e em marcha a ré, das quais sempre se servia nas suas relações com os outros. A expressão para a frente era firme e impetuosa como o avanço de um caminhão pesado. […] Raramente ela usava a outra expressão, […] Mas, quando o fazia, com o rosto enfim estacionado, havia em seus olhos negros um movimento quase imperceptível, durante o qual eles pareciam retroceder, e o observador veria então que Mrs. Freeman, embora estando ali presente, tão real quanto vários sacos de cereais empilhados, ali já não estava em espírito.”

Assim inicia o conto “Gente boa da roça”, que conta como Hulga, doutora em Filosofia, é seduzida e enganada por um vendedor de bíblias que acaba por roubar da moça a sua perna artificial. Ao contrário do que possa parecer, o conto em nenhum momento resvala para o sentimentalismo ou pieguice. É antes brutal e trágico, como a vida mesma tantas vezes o é. “A gente boa da roça é o sal da terra! Além do mais, cada um de nós age a seu modo e, para que tudo funcione, tem de ter gente de todo tipo no mundo. Assim é a vida!”, sintetiza Mrs. Hopewell, a mãe de Hulga.

Apesar dos aspectos trágicos que permeiam a maioria dos contos, dos temas pesados como o racismo e a religião, as histórias que O’Connor nos conta são belas histórias. Belas porque muito, muito bem contadas. Belas porque “Em todos os seus grandes contos, há sempre alguma coisa que não se submete, não se completa e não se fecha. E a brutalidade de sua literatura como que brota de pequenos gestos desarmados, através dos quais, paradoxalmente, acabamos por nos sentir em casa.”*

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*Cristovão Tezza, no posfácio de Contos Completos: Flannery O’Connor. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

Publicado por:Cris M. Zanferrari

Mestre em Letras, especialista em Filosofia, e especialista em Supervisão Escolar. É também especialista em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária, titulação obtida em 2022, pela Unochapecó. Atuou como docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Carazinho nos cursos de Pedagogia e de Design. Atualmente dedica-se a fomentar e mediar Clubes de Leitura e outras atividades literárias, além de ser gestora da marca Mania de Citação.

4 comentários sobre “Flannery e o leitor-atendente

  1. Quanta beleza! Um texto impecável no qual percebe-se a evolução da escritora a cada publicação. A descrição do encontro entre os dois leitores foi deliciosa.Um leitor vendendo livros deveria ser chamado de livreiro mesmo não sendo proprietário da livraria. A resenha despertou-me o desejo de conhecer mais um autor. Aí está a completa beleza de Mania de Citação quando o assunto é literatura.
    Beijos!

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    1. Mariza!!!
      Fiquei muito feliz com as suas palavras!! Considero um super elogio vindo de uma leitora como você!!!
      Obrigada pelas visitas, pelo carinho e pelo incentivo!! A responsabilidade é cada vez maior…hehehehehehe…
      Abraço afetuoso

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  2. Texto magistral!
    Desconheço a obra de Flannery O’Connor, mas, depois deste “conto”, impossível não querer conhecê-la..
    Aliás, quanto ao atendente, isso é algo que me dá extremo prazer em uma livraria.. Saber que o vendedor (ou deveria dizer, neste caso, “guia literário”? hehe) divide com você a mesma paixão pelos livros ❤
    Beijos carinhosos!

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  3. Olá, Júlia!
    Que bom saber que você gostou dessa “apresentação” que fiz da Flannery. Vale mesmo a pena conhecer a obra dela. Destaco desse mesmo livro outros dois contos: “Um homem bom é difícil de encontrar” e “A vida que você salva pode ser a sua”.
    Obrigada pela visita, querida! E volte sempre!
    Bjs

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