Cris M. Zanferrari
A insensibilidade tomou conta de mim. Ando imune às desgraças do mundo e dos mais próximos. Não consegui chorar diante da foto do pequeno Aylan. Seu corpinho frágil, os tênis intactos, os braços estendidos ao longo do corpo, o rosto colado à areia, tudo me pareceu não mais que uma criança adormecida. Sim, não fosse uma criança morta, era apenas a figura de uma criança dormindo.
A insensibilidade é um escudo, minha defesa. Preciso me sentir imune às desgraças alheias para não sucumbir. Minhas retinas estão fatigadas do horror de todo dia. A violência anda pela hora da morte. Os preços disparam à velocidade de uma bala. A corrupção está aqui e no fim do túnel. A insegurança mora por todo o lado. O pessimismo é um mantra. A realidade é uma criança que fugiu da guerra para morrer no mar.
Sim, há dias inconsoláveis.
E dias assim são como um terremoto. Aniquilam tudo o que há, e soterram_ ainda que apenas momentaneamente_ a mais tênue esperança.
Há que se resgatá-la das profundidades, de sob os escombros de nossas vistas cansadas, das camadas de insensibilidade que usamos para nos proteger. Há que se resgatá-la do abismo existencial, da loucura do mundo, da estupidez humana.
Há que se resgatar uma esperança qualquer para que chegue um dia qualquer, em que uma criança que parece estar dormindo seja apenas, e de fato, uma criança candidamente dormindo.
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CONSELHOS DURANTE UM TERREMOTO
Affonso Romano de Sant’Anna
A ruína nos dá lições de vida.
Desabam prédios no centro de Porto Príncipe num estrondoso terremoto. Racham pias, os espelhos se partem, água escura irrompe das paredes e tudo começa a afundar. Na rua os carros balançam igual gelatina, começa uma chuva apocalíptica de vidros e depois tijolos, ferro e pó, até que a morte se esconda sob os escombros. Mas a todo instante nos chegam notícias de que bebês sobreviveram seis dias sob os destroços, casais resistiram sob os entulhos e outros, apesar de desabarem inteiramente com os edifícios, chegaram ao solo intactos.
Então é lícito pensar que, embora muitos pereçam, a ruína nos dá lições de vida. Pois desabam os casamentos, os negócios , a saúde e os regimes, mas não se sabe onde nem por que milagre surgem forças, propiciando o resgate e nos livrando do total aniquilamento.
Todos já estivemos e estaremos em algum terremoto. Um terremoto é onde a paisagem nos trai. Um terremoto é quando se quebrou a solidariedade entre o seu ponto de vista e as coisas. Um terremoto não é só quando o caos demoniacamente toma conta do cosmos. Um terremoto, eu lhes digo o que é: é a hora da traição da natureza. Ou da traição também dos homens, se quiserem. Um terremoto, minha amiga, é quando como agora você está se separando. Você me diz de soslaio, querendo-não-querendo conversar, você vai me dizendo que seu casamento está desmoronando. Você está embaixo da pele, com a voz meio sepultada lançando um grito de socorro, e aqui com a equipe de salvamento posso lhe lançar a frase: a ruína nos dá lições de vida.
Terremoto é a hora da traição do amigo, que invejoso concorre como inimigo e lança fel onde a amizade era mel, e envenena a rima de seus dias sendo Caim em vez de Abel. Por isto, há que afixar conselhos sobre a hora do terremoto. Como nos abrigos antiatômicos, nas indústrias do perigo, há que adiantar as medidas a serem tomadas quando o terremoto vier. Daí, o primeiro conselho é: não entre em pânico acima do tolerável. Lembre que todo terremoto é passageiro. Porque este é o sortilégio dos terremotos: nenhum terremoto é permanente, embora muitos e tanta coisa nele pereçam para sempre. Mesmo os mais profundos e autênticos cataclismos não duram mais que pouquíssimos, embora diabólicos segundos.
Outro conselho: embora rápido e fulminante, nada garante que ele não torne a se repetir. Há que estar atento também para o fato de que esse movimento é interior e exterior. O que desabou por cima não é tudo. É sintoma apenas do que se moveu por baixo. Um terremoto autêntico vem mesmo de camadas profundas e a superfície só vai acalmar quando as camadas geológicas lá dentro se ajeitarem de novo.
Sobretudo, depois do terremoto há que aprender com as ruínas. Porque os engenheiros que me perdoem, mas a ruína é fundamental. É a hora do retorno. E se vocês me permitissem discretamente citar Heidegger, com ele eu diria que a ruína só é negativa para aquele que não entende a necessidade de demolição. Pois a tarefa do indivíduo é refazer-se a partir de suas ruínas. Temos mais é que catar os cacos do caos, catar os cacos da casa, catar os cacos do país. Depois da demolição poderemos nos erguer na luminosidade do ser. Ruína, neste sentido, não é decadência. Ao contrário: é a hipótese de soerguimento.
As ruínas do presente nos ensinam que um terremoto é quando não há mais o centro das coisas. E, no Haiti, foi o centro, o centro do centro- a capital, que foi arrasada.
Amigo, amiga, terremotos, dentro e fora de nós, hão de sempre ocorrer.
A ruína, além da morte, nos dá lições de vida.
Me emocionei com cada palavra do seu texto e do de Affonso ❤
''A insensibilidade é um escudo, minha defesa. Preciso me sentir imune às desgraças alheias para não sucumbir. Minhas retinas estão fatigadas do horror de todo dia. A violência anda pela hora da morte. Os preços disparam à velocidade de uma bala. A corrupção está aqui e no fim do túnel. A insegurança mora por todo o lado. O pessimismo é um mantra. A realidade é uma criança que fugiu da guerra para morrer no mar.'' Sem palavras para descrever o que meu coração sentiu ❤
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Obrigada, Lele! Palavras que vêm do coração… e Affonso é Affonso! Simplesmente amo!!
Bjs
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Me sinto assim … escondida no que há de bom, seguro, sereno para não me desesperar e sair correndo gritando o grito do Munch ….
Cadê o centro dos humanos?
bjsssss querida !
Obrigada :))
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Precisamos buscar a beleza nas coisas mínimas para não sucumbir!
Obrigada pelo carinho, Mia!!
Bjo afetuoso
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“A ruína, além da morte, nos dá lições de vida.” Tão forte esta frase conclusiva, como aliás, todo o texto. Passar por terremoto interno e externo não é tarefa fácil, há que ter muita compaixão e força pra superar. Não tem receita e dói, mas, como diz Affonso Romano de Sant’Anna, depois dela “poderemos nos erguer na luminosidade do ser”. Assim seja!! Beijo grande Cris e muito obrigada por nos trazer texto que nos dá remédios nada amargos.
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Depois “dela” porque o autor se refere à demolição.
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Marina querida!!
Achei que esse texto era muito apropriado diante de tudo o que está acontecendo, no Brasil e no mundo. É um texto que nos dá um alento, uma esperança. E precisamos tanto! Precisamos todos!!
Obrigada por sua querida presença aqui!!
Bjo afetuoso
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